segunda-feira, 14 de junho de 2010

domingo, 13 de junho de 2010

Projeto de roteiro de longa-metragem - concurso do MinC

MONSTROS E PALHAÇOS
Argumento de Marcos Paza

CONCEITO DE LONGA METRAGEM
Monstros e Palhaços trata sobre um tema insólito nos dias atuais: o desaparecimento de pessoas, principalmente crianças, sem deixar rastros, apenas especulações. O filme desenvolve algumas destas especulações: tráfico de crianças para o exterior; uma organização secreta que engloba médicos, políticos e polícias numa rede hedionda de criminosos que comercializam órgãos humanos. A ideia é realizar um filme policial como os produzidos pelo cinema americano e ambientados basicamente no sul do Brasil, com desfecho na mesma região.



















PERSONAGENS
Todas as peripécias serão vividas pelo escrivão de polícia, viúvo recente e deprimido, Roberto Figueroa, que sai de trás de uma mesa para investigar crimes, instigado pela amiga virtual (salas de bate papo na internet) norte-americana Karen O'Brian, agente destacada do FBI para a INTERPOL, especialista em encontrar pessoas desaparecidas. Ambos se encontrarão na cidade de Porto Alegre em poucos dias e logo decifrarão algumas pistas que abalam a confiança e a amizade que Figueroa tem pelo chefe, o delegado Antônio Morelli. O rumo das investigações mostrará atividades criminosas no interior do estado do Rio Grande do Sul, Europa e Estados Unidos.
A trama tem uma estrutura de tempo linear (início, meio e fim), sendo que o prólogo do filme apresenta três lugares e situações distintas e aparentemente desconexas que serão relacionadas no terço final do filme.


























ARGUMENTO

Esta é a história de um homem que perdeu tudo em que acreditava quando sua esposa e filha de cinco anos morreram em trágico acidente de automóvel. Após três meses, sua vida continua banal e monótona, sempre com a barba por fazer e roupa desalinhada, com camisa para fora das calças, era: casa, bebidas, internet, delegacia de polícia e casa novamente. Roberto Figueroa é um policial de 38 anos exercendo uma atividade burocrática como escrivão longe da ação de antigamente. Algumas vezes é assaltado pelo mesmo pesadelo: encontra-se na platéia de um circo ao lado de seu pai assistindo a um número com palhaços que colocam uma criança numa caixa para ser serrada ao meio logo em seguida, porém, ao fixar o olhar na criança percebe que se parece muito com sua filha Lídia, que grita horrorizada; ele vira-se para o lado de seu pai e já não o encontra mais, de repente não há mais ninguém na platéia, apenas ele nas arquibancadas, três palhaços no picadeiro e a menina na caixa já separada em duas. Então, os palhaços vêm em sua direção com expressões horrendas, sardônicas e com serrotes nas mãos. Acorda. Liga o computador e entra em algumas salas de bate papo na rede. Conhece uma americana que também é policial e investiga pessoas desaparecidas em seu país. Karen O’Brian, 34 anos, divorciada e sem filhos, aprofunda a relação virtual com Roberto a ponte de conhecer o drama do mesmo e fazê-lo refletir sobre alguns detalhes do desaparecimento da filha, uma vez que o veículo caiu de uma ponte numa noite chuvosa quando voltavam de uma viajem da casa dos avós da pequena Lídia, em Soledade, interior do Rio Grande do Sul. Helena Figueroa, 32 anos, foi encontrada presa nas ferragens e teria morrido por afogamento no rio; já alguns indícios como a porta do carona aberta, casaco e boneca encontrados a alguns quilômetros do local do acidente deixavam evidente que a menina teria sido arrastada pela correnteza do rio para dentro do estuário do Guaíba.
Roberto dirige-se para seu local de trabalho, uma delegacia de polícia distrital, onde o aguardam com uma pilha de documentos em sua mesa e uma fila de pessoas para registrar suas queixas: briga de marido e mulher, adolescente portando drogas etc. Em dado momento, num gesto robotizado e com o olhar fixo num mural próximo da entrada do prédio, uma série de fotografias e a frase “PESSOAS DESAPARECIDAS” rouba-lhe a atenção a ponto de seu chefe sacudi-lo para que possa ser escutado. O delegado Antônio Morelli, 48 anos, colega e amigo de Figueroa (Roberto), como era chamado pelo mesmo, acompanhou de perto a tragédia do amigo, sendo ele conterrâneo de sua falecida esposa e a ter conhecido desde menina, e insiste que ele tire uma licença-prêmio, descanse um pouco mais ou faça uma psicoterapia intensiva para tentar superar o trauma. Ele sai de sua mesa em direção ao mural e Antônio segue-o. Figueroa comenta que não tinha reparado naquele mural, posicionando-se bem no centro e perscrutando cada foto com um interesse que destoa completamente do homem aprumado e desolado de minutos atrás. Desconcertado e achando que o colega estava realmente perdendo o juízo, Morelli volta até a mesa de Roberto e chama um jovem estagiário para continuar atendendo um casal impaciente que principia uma briga.
Em casa, Roberto começa uma busca obsessiva por crianças desaparecidas e contata Karen novamente para saber sobre a atividade dela com a INTERPOL, como investigam e descobrem os casos que envolvem crianças desaparecidas. Embriagado e sonolento, fica incrédulo com as hipóteses e algumas confirmações de Karen sobre redes de tráfico humano com o único propósito de extirparem os órgãos para venderem a ricaços que não esperam na fila de doação como os demais, compram a sua saúde ou de um filho por milhões, não se importando com o ser humano “doador”, que não passa de uma casca após retirar-se a polpa. Novamente é assolado pelo mesmo sonho, porém com uma variação: a menina serrada na caixa é nitidamente Lídia e um dos palhaços está com um coração pulsando nas mãos.
Num pequeno sítio afastado da cidade de Erechim, completamente isolado, sem viva alma no descampado ao redor de uma casa rústica e um curral, quase amanhecendo, encontra-se um menino seminu, correndo em direção a porteira que está fechada e é muito alta; então, o garoto percorre a cerca de arame farpado com linhas bem estreitas; desesperado, ele agacha-se e escava com as mãos a terra próximo à cerca. Ao longe, avistamos uma mulher com traços rudes indo em sua direção, numa mão carrega um rebenque e na outra uma coleira com tirante. Um grito e choro de pavor se escuta, quando Dona Wilma, 55 anos, se aproxima da criança com um sorriso gelado e cadavérico, agigantando-se sobre ela com a certeza de que tudo acaba ali.
Limpo, barbeado e bem arrumado, Roberto vasculha vários recortes de jornais e pastas com casos de pessoas desaparecidas em sua mesa, alguns recortes tratam de matérias sobre tráfico humano. Morelli admira-se de ver o seu escrivão retomando o aspecto normal que conhecia e o aborda intrigado, “só pode ter uma explicação: é uma mulher!” Contudo, sua alegria se desfaz quando percebe a natureza do material sobre sua mesa, o homem está doente, realmente perturbado, conclui. Conversam e Morelli convence o amigo a tomar umas cervejas depois do trabalho.
Durante o happy hour, Figueroa faz uma bateria de perguntas ao colega sobre os detalhes do acidente de sua família, o que, desconversa Morelli, ele deveria esquecer, pôr uma pedra em cima. Então, como quem não quer nada, ele indaga sobre quem é a futura Sra. Figueroa, que o despertou da terra dos mortos. Roberto indigna-se com a piada e conta sobre a amiga virtual americana e suas conversas, que, por sua vez, não convence o amigo, fazendo, este, mais piadas de conotação sexual ao primeiro.
Em Tijuana, fronteira do México com Estados Unidos, uma operação da INTERPOL, do FBI e do Departamento de Imigração americano desbarata uma quadrilha de traficantes e “coiotes” que mantinham em cativeiro algumas crianças sul-americanas, incluindo duas brasileiras, completamente catatônicas, quase em choque.
No meio da noite um telefonema acorda a agente Karen. Após escutar a voz do outro lado por alguns segundos, dá um pulo da cama e diz que já está a caminho.
Pela manhã, num hospital americano, Karen é conduzida por um colega de campo do FBI até uma ala reservada às crianças maltratadas e sem identificação alguma. Conversa em espanhol com elas, mas esbarra em duas que ficam totalmente mudas. De repente, a menina começa a chorar e fala em português “eu quero a minha mãe!” Vou encontrar sua mãe, vou te levar até ela! Responde decidida à criança.
No sítio em Erechim, ao cair da noite, carros importados estão estacionados no pátio. Dentro, quatro homens de terno conversam com Dona Wilma, orientando para ser cuidadosa e mandando a velha enfermeira sedar uma criança para fecharem um negócio na Europa. A mulher desce até um porão com um fundo falso como porta. Lá, há um quarto forrado como um estúdio de som, com quatro camas e uma iluminação como laboratório de fotografia. No canto de uma parede, próximo ao teto, um ar condicionado tipo splitter refresca três crianças sonolentas. Ao retirar uma menina da cama D. Wilma passa pela cama vazia onde se encontra uma coleira amarrada na cabeceira e manchas de sangue nos lençóis. Um dos homens de terno pede pelo menino maior e mais forte. A mulher informa que este não poderá ser útil porque tentou escapar e não resistiu aos ferimentos causados pelo arame farpado. Um dos homens avança para cima dela enfurecido, questionando como uma enfermeira experiente não evitou isto, apertando-lhe o pescoço, acusa a mesma de tê-lo matado por prazer, torturando-o. Após os outros afastarem o comparsa da mulher, esta rebate que se o que ela faz é por prazer, qual é o prazer deles. Eles se calam. E informam que a célula mexicana caiu e não puderam queimar a mercadoria. Havia duas crianças brasileiras e uma delas passou por esta célula. E o pior: estavam na mão dos americanos, que em tudo metem o bedelho. Se a criança lembrar de alguma coisa que aponte para este lugar ela seria informada e já saberia o que fazer. E deveria ser rápida, ou ela e a família dela pagariam o preço.
No depósito de ferro velho da polícia, Figueroa procura junto com o responsável pelo setor, seu Raimundo, o carro da mulher dele, que ficara como evidência da perícia. Encontra e pede para ficar alguns minutos sozinho com o veículo. Seu Raimundo pondera, dizendo que era ilegal, mas se compadece do colega dá três minutos ao mesmo. Ele tira do bolso um celular com câmera e começa a tirar várias fotos. Percebe alguns cortes transversais no acento do carona, como se fossem feitos por um estilete ou uma faca. Fotografa e sai. De repente ele pára, volta como um raio e procura o cinto de segurança que não poderia estar protegendo sua filha, uma vez que, conforme o laudo da perícia, a porta se abriu com o impacto e ela não estava presa, sendo levada pela correnteza do rio transbordado. Põe a mão por baixo do acento, acha uma parte e puxa para cima, procura outra e junta as partes que se encaixam como se fossem cortadas na mesma altura do talho que marca o acento de Lídia. Ele fotografa chorando copiosamente. Pressente a vinda de seu Raimundo, guarda o celular no bolso rapidamente e o velho o abraça, levando-o dali, advertindo que não era uma boa idéia o que fizera. Foi uma ótima idéia, disse Roberto para um sujeito que nada sabia.
Em Zurique, numa tarde fria, dois homens de terno entram numa clínica clandestina, que, de fato, oculta um bloco cirúrgico completo para transplantes. São revistados por cinco seguranças armados e com detectores de metais. A caixa térmica é passada a um médico com máscara que a examina, acena positivamente com a cabeça e um outro vestindo um Armani passa uma maleta preta repleta de euros. Ambos saem. Dentro do bloco, o médico inicia o transplante.
Na tela do computador de Figueroa lê-se um e-mail de Karen com fontes bem grandes: CHEGO EM SUA CIDADE HOJE À NOITE, ÀS 22H, NO VÔO DE LOS ANGELES. TRAGO NOVIDADES. ESPERE-ME COM UM CARTAZ DE WELCOME! BJS. Logo em seguida, ele passa pela porta de seu apartamento, tentando fazer um nó de gravata que não fica bem certo.
Aguardando no hall do aeroporto Salgado Filho, segurando uma cartolina escolar, que fora da filha, com o nome de Karen, Roberto sente-se um idiota. Então, uma mulher loira, quase da sua altura, vem em sua direção sorrindo e abanando, como se fossem velhos amigos que não se viam há muito tempo. Ela o chama pelo primeiro nome e o abraça forte. Sussurra em seu ouvido que está aqui disfarçada, como turista, enganchando o braço no policial e dirigindo-se à saída. Pouco mais a frente, agentes da polícia federal e câmeras de TV e fotógrafos aglomeram-se num dos portões. Karen lhe diz que isto é parte da novidade. Boquiaberto, Figueroa pega um táxi em direção ao hotel reservado. Conversam em inglês sobre a visita inusitada e ela lhe explica sobre a operação em Tijuana, as crianças brasileiras resgatadas e que uma delas era de Gravataí. Como ficaria difícil ocultar da imprensa este tipo de situação, seu colega, o agente especial David Caruso viria oficialmente acompanhando a menina e compartilharia com a polícia federal os dados da operação.
Pela TV, um dos homens de terno, o Dr. Laércio Ramos, 49 anos, cirurgião e legista, assiste a reportagem da menina seqüestrada e resgatada na fronteira dos EUA. Ergue um telefone, disca e conversa por alguns segundos. Desliga, levanta-se de sua poltrona, chama a esposa e comunica que terão que deixar o Brasil por tempo indeterminado. Ela olha para a TV e vê uma criança chorando no colo de uma mãe muito pobre, ao lado estão o americano e os federais. Depois, olha para o marido e começa a chorar.
Figueroa e Karen jantam e conversam sobre suas descobertas: ele conta sobre a análise efetuada no seu carro e mostra as fotos tiradas; ela conta-lhe sobre os detalhes da casa que a menina Carol teria ficado escondida, que, provavelmente, ficaria no interior do estado. Segundo ele, com os dados fornecidos, seria como procurar uma agulha no palheiro. Também trocam informações pessoais, sobre suas famílias, frustrações, sonhos etc.
David se junta à dupla no restaurante. Karen faz as apresentações. Conversam e combinam um passeio na manhã seguinte, um sábado.
Próximo ao seu apartamento, Roberto é atacado por três homens encapuzados, que anunciam um assalto, espancando-o violentamente com cassetetes policiais, rasgando-lhe as vestes e roubando carteira, celular, relógio e sapatos. Sua sorte ou azar era que nunca portava arma. Ou matava ou morria com a própria arma. Não levaram suas chaves. Ergueu-se cambaleando em direção ao prédio. Dentro do banheiro entendeu o que houve, pegou o telefone e ligou pra casa de Antônio. Jussara, sua mulher atendeu, embriagada de sono, informando que ele estava fazendo uma operação especial. Tentou no celular dele, caiu na caixa postal. Deixou recado. Ligou para o hotel pedindo para falar com Karen. Disse que não poderia confiar em mais ninguém agora. Ela pediu seu endereço, ele relutou mas deu-lhe mesmo assim.
Numa rua escurecida pelas árvores que obstruem as luminárias públicas, dentro de um carro a brasa de um cigarro era constante. Alguns metros além do automóvel três homens caminhavam em passos largos, alcançando o mesmo. Entram todos. O motorista pergunta pelo celular. Um deles no banco de trás passa para frente. O motorista grita: filho da puta! Um bipe de mensagem se escuta dentro carro. O motorista ao aproximar o aparelho para ler, revela o rosto do delegado Antônio Morelli indignado. No celular: Morelli seu puto eu sei tudo. Me encontra amanha no largo Glênio Peres ao meio dia ou te fodoooo. O motorista joga o cigarro pela janela, liga o motor e diz para os outros: Figueroa de merda! Vamos acabar com este otário amanhã! Quero ele junto da daquela vadia da mulher dele!
Na cozinha do apartamento de Roberto, Karen serve um café fumegante para ambos. Pergunta-lhe se pode fumar e se fuma; ele concorda, mas parou há muito tempo atrás, quando conheceu Helena, uma naturista e ecologista de carteirinha. Também perdera o pai com câncer nos pulmões. Mas esta noite quebraria a regra. Aceitou. Em cima da mesa havia uma pasta de arquivo da polícia e pediu para Karen ler. Abriu a pasta e folheou as páginas, desculpando-se por não entender português tão bem quanto espanhol. Ele traduziu o laudo da perícia para ela. Não bate com as fotos que você tirou! Exclamou a detetive. Pelas fotografias, ela expôs uma teoria de que haveria mais uma pessoa no carro, no banco de trás. Ele lhe diz que tal pessoa só poderia ser o seu chefe na delegacia, o que, por sua vez, Karen tenta entender como Roberto chegara a esta conclusão. Veja na tela do meu computador, aponta o escrivão. Ela questiona o que um médico caçado pelo conselho faz na história e ele lhe mostra o laudo novamente. Mas o que eu preciso ver... Então, Karen arregala os olhos e enxerga a assinatura do legista caçado e do delegado Morelli. Fuck! Exclama uma descobridora de enigmas.
Em bairro luxuoso de Porto Alegre, o carro de Antônio Morelli aproxima-se de uma guarita com dois seguranças parecidos com ninjas, uniformes pretos e armados, que reconhecem o superior e abrem o portão.
Na porta da casa, Laércio recepciona o amigo com uma série de malas prontas na sala. Ao comunicar os fatos, o médico diz ao delegado que já esperava este desfecho e, que o melhor a fazer era ir para Europa, abandonar o país por alguns anos, depois tudo esfria. Morelli tomado de raiva diz que tem que cortar o mal pela raiz, acabar com o escrivão idiota e dar cabo dos americanos abelhudos também. O médico adverte que se ele não sair agora, a organização limpará todos os rastros que levam às células e aos chefes, queima total. O policial fica mais irritado com o tom de ameaça do outro e informa que quando entrou no jogo sabia as regras e não seria um pé de chinelo que o colocaria para correr. Chamou o médico de covarde e frouxo, virando-se e batendo a porta.
Deitados um ao lado do outro, frente a frente, apoiados com as cabeças nas mãos, Karen e Roberto perderam o sono. Ansioso pelo encontro com o colega para obter mais fatos do assassinato de sua mulher e filha, não conseguindo conter um ódio descomunal que brotava a cada segundo que especula sobre os motivos, qualquer coisa que tenha feito no passado para magoar o monstro que se configurava em sua mente, ele desabafava tudo com amiga, agora, real. Karen pedia calma a ele e que levasse tudo às autoridades local, procurasse a corregedoria ou o ministério público, pois não se tratava de alguns simples bandidos e corruptos de baixo escalão, a coisa era grande demais, era um monstro com tentáculos internacionais, corta-se um, nasce outro. Ambos refletem muito sobre tudo, Ética, Moral, Religião, direitos humanos, pobreza dos países do terceiro mundo. De repente, um barulho na porta assusta-os. Karen saca uma arma automática de dentro de sua bolsa que estava ao lado da cama, no chão. Pergunta se tem alguma arma no quarto, ele responde que não ter armas em casa, era outra exigência da esposa e da filha. Um policial desarmado, no país de Cidade de Deus é coisa nova pra mim! Exclama, retirando do meio das pernas uma míni pistola 22 mm e passando para ele. Figueroa recusa e pega em baixo da cama um cassetete de ferro retrátil, esticando-o rapidamente no ar. Ela pega seu celular e pressiona um botão: cavalaria a caminho!
David fora preparado por Karen antes de deixar o hotel, aguardando-a num táxi na esquina do prédio de Roberto. Viu três homens suspeitos, com jeito de militares que fazem serviços especiais, entrarem no edifício. Descera do táxi e os acompanhou a certa distância. Ao receber o alerta combinado, sacou a Glock 9 mm e disparou escada acima.
Um ruído de passos na sala em direção ao quarto fica cada vez mais audível, um movimento suave na maçaneta, um lento entreabrir de porta e um facho de lanterna de bolso apontando para a cama onde um Figueroa dorme todo enrolado no lençol, é abordado por dois dos brutamontes com cassetetes na altura da cabeça. Um berro e a lanterna é arremessada para longe no quarto. Karen liga outra sobre a arma em mira aos dois na borda da cama, um vira-se rapidamente ignorando o “parado”, carregado de sotaque e avançando em sua direção, se estatelando no chão com um golpe de ferro nas pernas. A luz da sala é ligada, sai para fora do quarto o sujeito encapuzado que segurava a lanterna com a mão pendurada, completamente quebrada. David tenta acertá-lo com uma coronhada mas ele se esquiva com rapidez do agente, escapulindo; entra no quarto, liga o interruptor, e dá um comando em inglês, esquecendo-se que está no Brasil. Os encapuzados atravessam por cima de David, fugindo.
Num bairro pobre de Gravataí, em pleno sábado ensolarado, uma multidão de pessoas, entre parentes e vizinhos, comemoram o retorno da pequena Carol. Muito churrasco e cerveja exaltam o momento. Afastado do grupo feliz, um homem assiste do interior de seu carro aquela palhaçada, com direito a cobertura nacional por uma imprensa sensacionalista, o que aumenta a fúria de Morelli, enquanto este liga o carro para encontrar seu colega escrivão.
No centro da cidade faz muito calor, 32 graus no relógio da Praça Argentina. Próximo a uma banca de revistas está Figueroa, cheio de hematomas e escoriações, folheando um jornal com a história da menina que logo mais iria para um banco de dados da PF para começar o processo de reconhecimento das pessoas suspeitas. Muita gente circula no largo naquele momento, alguns policiais militares caminham de um lado para o outro. Enfim, Morelli se aproxima do colega com os olhos injetados de ódio. O escrivão contém-se ao máximo para não avançar sobre o outro, sacando o ferro retrátil enfiado nas calças. Começam sua conversa com aspereza, o delegado tenta saber o quanto o idiota realmente conhece, se não vai falar demais e se complicar mais ainda com o organização. Num ímpeto, Roberto despeja uma série de informações documentadas que detém, deixando-o perplexo com a segurança das informações. Então, o passarinho começa a cantar, confirmando nomes e localização de algumas células. Figueroa começa a sentir medo pelas coisas que vai ouvindo, por ter que carregar tanta sujeira na mente. Aí, chegou o momento da peça fundamental: sua mulher e filha onde se encaixavam neste complô diabólico contra a humanidade. O delegado rebate com outra pergunta: você sabe tanta coisa e não entendeu como aquela vagabunda se encaixa? Ao ouvir isto, cerrou os punhos e partiu para cima do outro. Morelli mandou o valentão olhar bem em volta, aqueles gorilas e mais uns quatro mal-encarados o fitavam com gana. Aprumou-se e escutou a lengalenga de apaixonado e descornado mais estapafúrdia de sua vida, um asco lhe subia pela traquéia, ao saber da paixão por Helena na sua infância em Soledade.
No fim de semana que morreram, ele estava visitando a mesma cidade, foram passar o dia dos pais lá. Levou consigo o amigo Laércio, já que Roberto, que tinha pai falecido, ficou de plantão na delegacia convenientemente escalado pelo delegado amigo. À noite, chovendo muito, Helena e Lídia iam à frente, tomando certa distância do BMW de Laércio e Antônio, pois o havia repelido durante o dia por cercá-la com declarações baratas. Com a estrada muito escorregadia eles deram sinal de luz para pararem. O delegado ofereceu-se para dirigir, ela recusou, mas a pequena Lídia pediu para o tio Toni ir junto. Ele entrou atrás. Passado alguns minutos, Morelli começou a aborrecê-la novamente, deixando a menina nervosa, a ponto de a criança tentar agredi-lo. Irritada com ele, a esposa do escrivão distraiu-se, derrapou próximo a um a ponte, e, o delegado, num átimo, tenta pegar o volante projetando-se para frente, mas o choque é inevitável, despencam para dentro de um rio com forte correnteza.
Laércio desce em socorro do grupo, mas é tarde para Helena que quebrara o pescoço, a menina estava em choque mas viva. Com um bisturi, o médico a solta do cinto emperrado, escancara porta e retira a criança. Antônio, quase histérico, aos prantos culpa a pequena Lídia, deseja que a criança tenha morrido, por tê-lo feito perder sua amada desde a infância, só poderia ser filha daquele escrivão imbecil! Os dois na estrada precisavam agir rápido: Laércio revela ao amigo o trabalho sujo que presta a uma organização internacional, primeiro ele se horroriza, depois aceita pelos valores astronômicos do negócio. Exalta ao colega o poder que ambos têm, ele em pé, com a menina aos seus pés, todo encharcado, discursando como um pregador para o outro, que, de joelhos, se rende ao plano do médico legista.
Animal e porco imundo são algumas das palavras iniciadas pela boca de um homem com os olhos mareados, a boca espumando de raiva, a barra de ferro na mão, sem mais nada para perder, ergue o braço quando Antônio saca um revólver e grita “Polícia!”
Viaturas da PF descem a Avenida Borges de Medeiros, vários agentes cercam o delegado. Dentro de uma das viaturas se encontram Karen e David. Forma-se um tumulto, pessoas correm no entorno, outras espreitam. O chefe da operação dá voz de prisão ao mesmo. Não adianta resistir, toda a conversa foi gravada. Delegado, é melhor se entregar. Antônio Morelli, alucinado, encosta o cano do 38 na têmpora: Que se foda!
No aeroporto, Laércio e sua mulher, Maria, estão no deck de saída, quando um movimento de pessoas exagerado se apresenta em sua frente, logo em seguida, dois agentes da PF os abordam pelos lados, dando voz de prisão e algemando o doutor.
Em Erechim, no sítio isolado, deslocando-se furtivamente e aproximando-se da casa, agentes a invadem, perseguem dona Wilma que foge por uma janela, dando-lhe voz de prisão quase no meio do mato; insistindo na fuga, ela se emaranha nos arames farpados, gritando e praguejando muito.
Karen e David entram com os agentes no cativeiro. Vasculham de cabo a rabo, exaustivamente. No porão, após analisar um cano de ar que percorre um canto da parede, penetrando-a , Karen pede para a equipe quebrar aquela parede. Após muita poeira de cimento, o grupo vê as camas e três crianças sedadas. A agente as examina, não acreditando no que ela mostra ao colega David: uma menina, magrinha, loirinha. Esta é a filha do escrivão, Lídia Figueroa! Todos começam a deixar a casa, e Karen sai com Lídia no colo. Talvez, uma lágrima tenha escorrido por seu rosto.

Ensaio sobre Terra Sonâmbula de Mia Couto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
LITERATURAS AFRICANAS DE L. PORTUGUESA















VIAGEM À TERRA SONHAMBULAN-TE DE MIA COUTO









Marcos de Brito Paza










Porto Alegre, janeiro de 1997.




























(...) uma sombra mais negra que a sombra da noite, e em volta nobremente nas dobras de uma suntuosa e-loqüência. A visão pareceu entrar na casa comigo -a padiola, os padioleiros fantasmas, a bárbara multidão de adoradores obedientes, a escuridão das florestas, o brilho do remanso en-tre as curvas lamacentas, o bater do tambor, regular e abafa-do com o bater de um coração -o coração de uma vencedora escuridão. Foi o momento de triunfo para a selva, um avanço invasor e vingativo que, pareceu-me, eu teria de repelir sozi-nho pela salvação de outra alma. (...) Queria apenas justiça. Toquei a campanhia diante de uma porta de mogno no pri-meiro andar, enquanto esperava ele parecia fixar-me do en-vernizado painel -fixar-me com aquele olhar amplo e imenso, condenando, detestando todo o universo. Pareceu-me ouvir o grito sussurrado: 'O horror! O horror!'
Joseph Conrad (Coração das Trevas)


VIAGEM À TERRA SONHAMBULANTE DE MIA COUTO

No início do século XX um escritor irlandês mudaria radical-mente o modo de se conceber a narrativa de ficção moderna: James Joyce, com o seu monumental Ulisses, viagem homérica no "fluxo de consciência" de um simples homem. Pouco mais da metade desse século, em terras brasi-leiras, outro gênio das letras traria à luz obra de alcance similar a de Joyce: Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, que enveredava sertão adentro com seu Riobaldo, personagem-narrador, um jagunço filósofo que faz sua travessia sobre o fio da navalha entre o Bem e o Mal. No outro lado do ser-tão mineiro, cruzando o oceano, num outro oceano, surge uma nova narrati-va onde os personagens se definem como outros viajantes, viajantes em uma Terra Sonâmbula, que é título e lugar-condição da obra de Mia Couto. A terra é Moçambique. O tempo, o atual, de guerra, de morte, de fome, de se-ca... E de sonho.
Durante quatro séculos Moçambique viveu sob o julgo colo-nial de Portugal, só obtendo a independência após dez anos de uma guerra sangrenta pela libertação, finda com a queda de Salazar em 1974. A partir de 25 de junho de 1975, com a independência política e econômica consumada, Moçambique se encontra novamente em conflito, agora, a disputa pelo poder interno se acirra. Samora Machel, primeiro presidente e líder da Frente para a Libertação de Moçambique (FRELIMO), incapaz de conduzir e resolver os problemas econômicos (fortes secas que assolam o país) e sociais (fome e miséria generalizadas), além de auxiliar os rebeldes contra o regime de su-premacia branca na Rodésia (atual Zimbabwe), sofre o ataque da Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO), criada pelo governo da Rodésia para destruir as bases rebeldes localizadas em Moçambique. Em 1980, após a Ro-désia ter ganhado o governo da maioria negra, a África do Sul adota a RE-NAMO, a qual investe numa campanha violenta para desestabilizar Moçam-bique e acabar com seu apoio aos oponentes do regime da África do Sul. Em 1984, com uma economia arrasada e incapaz de conter a RENAMO, Mo-çambique assina um pacto de não-agressão com a África do Sul. Apesar de Moçambique manter o acordo, a África do Sul permanece mantendo a RE-NAMO por vários anos.
Após a morte do presidente Samora Machel em desastre de avião (1986), sendo substituído sem maiores problemas por Joaquim A. Chissano, o nome do país muda de República Popular de Moçambique para República de Moçambique (1990). Com uma nova Constituição, o Marxis-mo-leninismo é abandonado e é criado um sistema político pluripartidário, com eleições diretas para presidente através do sufrágio universal e um man-dato de cinco anos por até duas gestões.
Ainda em 1990, o governo e a RENAMO assinam um cessar-fogo limitado ao longo do corredor de Beira e da ferrovia de Zimbabwe para Maputo. Em março de 1992 os dois lados assinam um protocolo sobre um sistema futuro de representação proporcional, com eleições um ano depois de efetivado o cessar fogo em todo o país. Em agosto, Chissano e Afonso Dhlakam, líder da RENAMO, se encontram pela primeira vez face à face e assinam um acordo definitivo, efetivado em 4 de outubro de 1992, pondo fim à guerra e clamando por eleições democráticas. Mesmo com o fim da guerra, os problemas com a seca e a fome permanecem até hoje.
O contexto histórico acima serve ao propósito de demonstrar o pano de fundo onde os personagens de Mia Couto navegam. Os persona-gens Tuahir e Muindinga (um velho e o outro um menino), como dois cava-leiros errantes, encetam uma jornada no mais profundo coração das trevas (conradiana mesmo), embarcando não em um vapor mas num machimbombo (ônibus) queimado, imóvel, marcado pelo horror da guerra. O único movi-mento possível é o da paisagem - a verdadeira viagem da narrativa - , con-forme vão sonhando, ou melhor , lendo os cadernos de Kindzu. Sua leitura (re)cria o espaço, a esperança na terra, no fim das trevas e no começo da luz ( a sabedoria, a paz ). E Muindinga, ao se transformar num personagem-leitor-narrador, carrega consigo o fato de representar a passagem de uma tradição oral (marcada no analfabetismo de Tuahir) à escrita, porém em lín-gua portuguesa, lugar onde é possível inventar o mundo em brincriações, tornar viável o caminho, dando ao mundo o testemunho de uma terra irriga-da com sangue e a ignorância de alguns homens maus.
Dentro dos cadernos, Kindzu transforma a terra que habita em água. A busca de identidade o conduz a trilhar o caminho do pai, já um es-pectro que o persegue. Deixa o lar, sua terra devastada, para viver dentro de uma canoa a maior aventura de sua vida: transformar-se num guerreiro napa-rama com o objetivo de ajudar a pôr fim a esta guerra insensata. A água dos mares o conduz a um novo destino de águas: uma mulher. Farida compõe uma das passagens da jornada de Kindzu onde o erotismo se liqüefaz, tal é a forma como ele nos descreve seu encontro com a nova personagem:

(...) Um dedo foi entrando no canto da boca . To-quei primeiro em seus dentes, depois senti sua saliva. Era uma saliva quente, parecia que não era apenas um dedo mas todo eu inteiro que penetrava numa caverna aquecida. Outro dedo caminhou nos interiores dela, nervoso de contente. Lá fora, o mar esturdilhava, lançando espumas. O vento soprou com mais raiva, as ondas começaram a varrer tudo, sem res-peito. Mesmo ali, no guardado de nossa sala, a água jorrava. O mundo esvanecia e o mar já não importava. As mãos mo-lhadas de Farida desataram as vestes, os dedos dela parecia eram de água. Ela se deitou, derramada no chão de ferro. Nos colamos em gestos de afogado. As vagas ondeavam nos-sos corpos, indo e vindo. Os dois éramos já só um, emergindo como uma ilha num imenso nada. ( COUTO,1993.p.117)

A partir desse momento, Kindzu mergulha mais profundamen-te neste sea of troubles ( mar de infortúnios ) hamletiano, tomando para si a missão de encontrar o filho perdido de Farida, Gaspar. Segundo a resenha crítica de Alberto da Costa e Silva ( na segunda e terceira capa ), Terra So-nâmbula é considerado como um romance de cavalaria, o que, por analogia, Gaspar simbolizaria o Graal da restauração, o cálice redentor de todos os infortúnios.
O amor de Kindzu por Farida o erguerá sobre os homens e a própria guerra. Sua busca por ser um guerreiro naparama se dissolve diante do novo destino. Contudo, quase como o seu pai, Gaspar era um fantasma, uma miragem no horizonte, uma esperança; Kindzu ao procurá-lo volta-se ao interior da terra, é o momento de encontrar a sua raiz, de realmente agir em prol da reconstrução do país; ao passo que Farida, exilada num navio enca-lhado, representa uma evasão latente, a fuga sonhada mas não concretizada. Essa contradição entre a fuga e a busca de um país apresenta-se como cerne temático dentro da narrativa, entre outros, é claro, onde o personagem, em passagem magnífica, nos diz:

(...) A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indí-genas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretu-do, culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair pa-ra um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente dentro de África. ( COUTO,1993.p.113 )

O comentário de Kindzu demonstra perfeitamente não somen-te a sua condição mas a de todo o povo moçambicano. Toda a sua cultura, seus antepassados, desfalecendo diante da sobreposição de uma outra cultu-ra, onde a língua dos invasores, como uma droga inoculada, vai lentamente apagando o antigo mundo desse povo, roubando-lhe sua história. E a barbá-rie da guerra legitima tal apagamento, estilhaçando as esperanças, as quais vertem-se em medo e angústia, o que, por sua vez, move Farida ao encontro de um novo mundo. Kindzu em caminho oposto, tenta reunir os pedaços de sua África e o faz contando sua história, para enfim encontrar o seu conti-nente.
A trajetória dos cadernos de Kindzu faz pensar sobre a possi-bilidade de enxergar um país lewiscarrolliano, conforme avança a narrativa de um estado consciente a um realismo fantástico, onde as maravilhas só acontecem no lado de dentro dos homens, deixando no lado de fora o hor-ror, a sua parte sombria, diabólica, irracional. O país dos sonhos navega en-calhado na beira da praia, nunca alcança um porto seguro - imagem provo-cada pela personagem Farida que tenta pôr um farol para iluminar o caminho dos homens, sem sucesso e pagando com um destino trágico - porque a seca atingiu o coração dos homens. Seco é o coração da terra que Kindzu peram-bula até as suas páginas lubrificá-lo, encontrando o jovem Gaspar no cami-nho final de sua narrativa. Aqui, entende-se que o destino do narrador é o caminho. Toda a sua jornada é um retorno ao começo, uma tentativa de re-fazer, recriar a obra danificada, quebrada. Nesse sentido, o personagem de Mia Couto, invertendo a ordem, sai da lenda para entrar na história, numa circularidade dinâmica regida pelo sonho, rompendo com a lógica formal de contar uma estória. Atitude que ao transcender a estrutura do romance, man-tendo coerentemente a riqueza mítico-simbólica do enredo, eleva Terra So-nâmbula ao patamar das obras-primas ou dos clássicos universais. *


* Texto de Marcos Paza, publicado em: Cadernos do IL\ Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras. N17 (junho de 1997) - Porto Alegre: IL, 1997-.

Meus textos na UFRGS!

Leitura e produção textual I


Professor: Mathias

Turma: G

Nome: Marcos de Brito Paza

Tema: 1- A vinda de ônibus até o campus


Através da janela correndo: a solidão


Um gole de café preto às pressas e um cacetinho com margarina iniciam o dia de um universitário, já atrasado. A linha T-6 depois das 7h da manhã é uma lata de sardinha e, raramente, o Campus-Protásio vem vazio. Hoje foi um destes dias. Sentei no lado esquerdo, junto à janela, enquanto o relógio de pulso lembrava que já eram sete e meia. A aula estava iniciando neste exato momento e eu andava a vinte minutos desse instante. Principiei uma pequena divagação sobre o tempo-espaço, a teoria da relatividade e o bom humor do professor, hoje.

O sol corria lá fora sem nunca deixar de invadir meu Ray-Ban. Que linda manhã! Pensei. Nisso, senta ao meu lado uma moça toda de preto. Era o dia lá fora e a noite ao meu lado. E a noite me atraía extraordinariamente. Olhei-a de relance e percebi certa tristeza em seu rosto claro, aqueles olhos amendoados pareciam ter chorado, mas lutavam terrivelmente agora para ficarem secos, alegres, vivos. Através da janela meus pensamentos ficaram com uma criança no banco de trás de um carro que passara. Queria fugir de olhá-la novamente, porque sua tristeza empurrava-me de volta no tempo, e doía em meu peito esta viagem para trás. Chegara aonde temia.

– Marcos, eu preciso te devolver isso. Acho que não vai dar certo. – Elisa retirava a aliança de noivado.

–Mas é o que tu realmente queres fazer? Eu... Elisa, o que fiz de errado? Te magoei? Disse alguma coisa?

– Não. Não é isso... É difícil de explicar. Mas não é tu. O problema é comigo. Eu sinto tanto, sinto mesmo... Não sei... Parece que a gente pertence a um outro lugar, um outro tempo, não este aqui. Nós temos nossa Brigadoon!


Brigadoon, Brigadoon... Quase pronunciava em voz alta o título original do filme de Vicent Minelli, que, aliás, foi intitulado no Brasil de A lenda dos beijos perdidos, de 1954, e com Gene Kelly e Syd Charisse. Minha ex-noiva amava Gene Kelly. Acho que ela me deixou por ele. Será que a moça-noite brigou com o namorado? Ou será que ele foi o algoz dela? Quem sabe poderia ser um problema familiar... Uma morte! Deus! Tomara que não. Ela é tão linda. Que vontade de afagar seus cabelos loiros, dar o ombro para ela chorar, conversar um pouco. Procuro suas mãos: que alegria, não havia aliança. Ela é solteira! Ou não? Não, talvez ela não queira ser incomodada. O quê? Já estamos na Veterinária! E agora? Falo com ela ou não? Na curva para o Campus eu falo, faço um comentário sobre o dia magnífico, sobre o horário de aula, que bom seria estar na beira da praia ( com ela de preferência ). Opa! A sinaleira, o sinal está vermelho. Ou vai ou racha! Fala homem! Diga qualquer coisa. Eu não consigo. Ora, você vai perder um mulherão... Devo estar louco, pois já tem dois dentro de mim discutindo. Deixa de ser tímido e joga um-sete-um na menina. Não, esse não é eu. O sinal está verde... Chega! Você esqueceu de amar, você é um egoísta. Não! Não sou egoísta e posso amar novamente. Pare de pensar, porque quem vai chorar daqui a pouco sou eu. Não posso evitar. Então, lá vou eu: tu estás na Letras, não estás? Ah, no Bacharelado. Tu já fizeste a disciplina de Produção de Texto? Não? Ela é fundamental para nossa carreira de professor. Ah, vai cursar no ano que vem. Não sabe escrever? Todo mundo que entra na Letras não sabe escrever, acho que o pior, ainda, é sair do curso não sabendo. É. Tu tens razão. Reflete na escola este despreparo. Estás indo para o Instituto? Qual bolsa tu fazes? Inglês... Não, eu tenho aula e já estou atrasado como sempre. Ah, desculpe, é Marcos. E o teu? Muito prazer, Fabiana. Preciso confessar-lhe uma coisa: acabo de romper com a solidão escrevendo sobre você.














Leitura e produção textual I


Turma: G

Marcos de Brito Paza

Tema: 2- Um grande susto, uma grande emoção.


O assalto


Passava da uma da manhã quando desci do lotação e não havia um único táxi na entrada do meu bairro. Teria que caminhar quase um quilômetro até em casa. Era uma noite silenciosa e vazia de almas. O vinho passado da conta entortava o caminho. Minha rua, no topo da avenida que seguia, nunca chegava. O sereno começava a instigar medo, gelando o coração. Nem um grilo, nem um latido, nem um veículo passando, era uma noite estranha, suspensa no tempo. Meu pensamento ia ao encontro do lobisomem que minha mãe vira, ou melhor, ouvira arranhar as paredes de sua casa quando menina. Mas que hora para pensar numa fantasia destas! Evoquei a loirinha de olhos azuis que me fitava horas atrás lá na pizzaria. De repente a loira sumiu num blecaute em todo o bairro. Um arrepio me percorreu da nuca aos dedos dos pés. A imagem do monstro vinha com mais força na escuridão. Apurei o passo. Estaquei ao som de um grunhido vindo de minha esquerda, o que, àquela altura da caminhada deveria haver uma praça, e logo em seguida um descampado com arbustos e árvores na subida da lomba. Gelado até os ossos, olhei para o lado e vi dois olhos vermelhos em brasa, a cerca de dez metros. Corri morro acima.

No topo, entrei pela praça descampada. Nada me seguia. Ora, bebi demais, foi só isso. Agora já estava próximo de casa. Alguém se aproximava pela minha frente, era um vulto humano. O sujeito parou na minha frente. Via somente sua silhueta sob a luz das estrelas. Falou:

– É um assalto! Passa a grana! Anda senão te queimo!

Comecei a rir sem parar.

– Do que tu tá rindo! Não é brinquedo. Eu te queimo mesmo.

– Tu tem bala de prata? – Perguntei segurando o riso.

– Bala de p... O quê? Tá me gozando? Pra quê?

– Não tá vendo? Tem um lobisomem atrás de mim. Foge!

– Quê?! Não existe... Que barulho é esse? Não pode ser...

– Eu não te falei?

– Meu Deus! Me larga! Aaai!!!


Pela manhã, entrando na mercearia para comprar pão e leite, duas mulheres comentavam com a dona:

– Tu viu, Elvira, encontraram um homem morto no campinho. – Disse uma das senhoras.

– Foi assalto? – Perguntara a dona.

– Parece que foi. Mas o bandido é que levou a pior.

– Bem feito! Pra ti? O que vai?– Me olhando.

– Quatro cacetinhos e um saquinho de leite.

– Como é que foi? Levou um tiro? – A dona perguntava já pegando o meu dinheiro.

– Não. A polícia disse que nunca tinha visto nada parecido: a arma era de brinquedo e estava a uns três metros do corpo, provavelmente tinha voado longe com a investida do outro, a vítima, quer dizer o agressor. E, o mais engraçado, a camisa dele estava toda estraçalhada, a pele e os cabelos estavam brancos, os olhos estalados e a face com uma expressão de horror. A única lesão era uma mordida no pescoço...

– Credo! – Disse a dona da mercearia.

– Jesus! A mordida era de gente. Mas ele não morreu dela...

– Morreu do quê?

– Morreu de medo, de puro medo.


Ouvi a resposta da senhora já saindo da mercearia. Enquanto abria o portão de casa, olhei para o meu cachorro, que sempre fugia e circulava pelo bairro à noite, e lembrei do que minha falecida avó dizia: "Tem um lobisomem dentro de cada um. Um dia, numa noite escura, ele aparece, quando a gente menos espera..."









Leitura e produção textual I


Turma: G

Marcos de Brito Paza

Tema: 3- Narrar uma situação ridícula


Brigite e a luta de classes


Na praia, conheci uma senhora aposentada e viúva que diariamente levava sua cadelinha poodle para brincar na areia. Dona Euzébia, ou melhor, tia Bia, como gostava de ser chamada, contava com quase setenta anos e Brigite estava na flor da mocidade. No terceiro dia de mar, era íntimo amigo das duas. Tia Bia fazia o tipo vovó Anastácia, do Sítio do Pica-pau Amarelo, disposta, alegre e sempre cheia de histórias. Brigite, por sua vez, era a típica cachorrinha de madame, perfumada, focinho empinado e fitinha vermelha na cabeça. Um bibelô!

Domingo, a quarta manhã de amizade, Brigite migrou para um grupo de meninas um pouco mais à esquerda da vovó. Não voltou mais a brincar comigo. A cadela me abandonou! Se viesse de fininho para meu lado, a desprezaria. Ingrata! Pequeno-burguesa! Patricinha! Mordia as palavras na minha cabeça. Lá, no meio de suas coleguinhas, Brigite era toda pulinhos, latidinhos e lambidinhas. Que inveja! A vovó Anastácia ria descabidamente. Eu ria amareladamente. Joga pauzinho pra lá, joga pauzinho pra cá, de repente, Brigite investe contra o rosto de uma das mulheres — que apenas tomava banho de sol e ria de seus malabarismos —, cobrindo-o de areia. Ergue-se, ficando de joelhos e esfregando os olhos. A vovó leva a mão à boca, envergonhada. Eu solto uma risada da largura da praia: a Patricinha deixara a parte de cima do maiô enfeitando a esteira. Brigite, avidamente foge com a peça entre os dentes. Nunca tinha visto alguém se bronzear tão rápido como a moça de topless. Demorou alguns segundos para cruzar os braços sobre os seios, além disso,o rosto parecia um bolinho de camarão mal passado coberto de farofa. Ao perceber que a olhava com deleite, jogou-se de volta na esteira. Suas amigas e a tia Bia perseguiam Brigite mundo à fora. Procurava me conter, pois a moça fuzilava-me com os olhos, que lacrimejavam da areia ou de vergonha. Por um instante, me senti vingado, segundos depois me odiava, o remorso me invadia o peito. Fui até a moça, pedi desculpas, emprestei-lhe minha camisa, ficamos amigos, deixei de ser egoísta e abandonei a luta de classes.


Leitura e produção textual I


Turma: G

Marcos de Brito Paza

Tema: 4- Definir uma pessoa


Raquel


Eu a conheci com os meus vinte anos. Raquel foi a primeira mulher de minha vida, de fato. Voltava para casa quando ela embarcou no ônibus, cheia de sacolas. Prontamente, ofereci meu assento, ajudando-a com suas sacolas. Conversamos. Era a semana antes do Natal e falávamos de presentes. Escutava mais do que falava: ela estava casada, não tinha filhos e o marido passava o tempo todo viajando. Passavam pouco tempo juntos. Percebi certa tristeza em sua voz nesta parte do assunto. Um rápido silêncio me fez pensar sobre ela: deveria estar na casa dos trinta anos, vestia-se como uma menina, muito sensual, sua voz tinha a eloqüência do solitário quando encontra alguém para conversar, e havia algo mais secreto que eu não percebia naquele momento. Sua parada se aproximava e me prontifiquei a ajudar com as sacolas. Insisti. Desci em sua parada.

Um tanto nervoso e embaraçado, acompanhei Raquel até seu apartamento. Ela caminhando parecia deslizar: as sandálias de salto alto davam-lhe a majestade de uma estátua da liberdade, a calça jeans marrom e a blusa colante branca evocavam a silhueta de uma deusa grega, e o movimento dos quadris acelerava o coração de qualquer mortal, como uma dança inebriante. Era uma exuberância e sentia-me constrangido a seu lado. Na porta do apartamento hesitei para entrar. Agora, foi ela quem insistiu. Grande, perfumado e confortável como sua proprietária, concluí. Aguardava-a na sala enquanto servia-nos refrigerante. Com um copo em cada mão, parou na minha frente, mal esticando o braço e roçando-me com sua perna o meu joelho. Peguei o copo de guaraná a altura de seu ventre, que estava a uns trinta centímetros de meu rosto. Olhei para cima e notara que a luz do lustre dava o tom do refrigerante aos seus cabelos. Sentou-se languidamente a minha frente, acendeu um cigarro e soltava a fumaça com uma suavidade que me fazia flutuar. Esquecera-me do mundo e de que era casada. A conversa ia por mais de uma hora quando paramos de falar sobre os outros, os problemas, o trabalho, os estudos etc.; percebendo que me preparava para ir embora, restringiu a conversa a nós. Contei-lhe que estava solteiro e recém saíra do serviço militar. Confessei-lhe também que tinha me apaixonado por uma menina que não dava a mínima atenção aos meus sentimentos. De repente, ela desabafou: não suportava mais ficar sozinha, discutia com o marido mais do que fazia amor, achava até que ele teria outra mulher. As lágrimas brotavam rapidamente. Sentei ao seu lado e abracei-a, afagando seus cabelos que exalavam um perfume adocicado de alfazema. Raquel me perguntou se eu podia ficar, passar a noite com ela, que isso não seria problema algum, pois o marido estava em Manaus e só retornaria em dez dias. Tive medo. Mesmo assim, concordei em ficar. Permanecemos alguns minutos abraçados, em silêncio, enquanto adormecera lentamente com o cafuné que fazia.

Ambos na cozinha preparávamos um modesto jantar: abria o vinho tinto e minha anfitriã preparava sanduíches de pão integral com alface, atum, maionese, toma-te e queijo. Conversávamos sobre cinema. Tinha gravado em VHS um filme que dizia respeito a uma paixão recíproca: assistimos Casablanca juntos, mesmo dublado era magnífico. Olhamo-nos no final com lágrimas e sorrisos no rosto. Meus olhos ficaram presos no de Raquel, seu olhar castanho escuro de Ingrid Bergman indo embora me hipnotizava. Beijamo-nos. Seu beijo era doce como o vinho que bebíamos, quente e ávido, forte, repleto de um desejo há muito tempo reprimido. Meu corpo aderiu ao de Raquel como se ela fosse um grande ímã. Incrível! Tentei em vão evitar ir além, conter o desejo que se espalhava pelo corpo, indo concentrar-se no meu sexo. Percebera que estava quase nu quando Raquel tocara-o, friccionando-o sobre o seu corpo e logo em seguida conduzindo-o delicadamente para o seu interior. Nesse momento, todo calor transformara-se em gelo e parei. Entrei em pânico e não consegui: o adolescente de várias sacanagens brochara! Queria sumir, sair dali. Fiquei completamente envergonhado. Mas a doce Raquel conteve-me, disse que isso não era nada, que era um problema de ansiedade, que ela tinha se apressado um pouco e que eu precisava relaxar. Fazia-me cócegas, distraía-me, perguntava sobre outras experiências sexuais. Acariciando-me o tempo todo, ela me eximia do sentimento de culpa. Adormeci. Pela madrugada acordei e Raquel dormia sentada, comigo atravessado no seu colo. Despertara simultaneamente. Pegou-me pela mão, entramos no banheiro e tomamos uma boa ducha quente. Deitados face a face, quebrei o silêncio:

Tu assististe ao filme com Rita Hayworth? Assisti, por quê? Lembras da frase sobre ela? Lembro: nunca houve uma mulher como Gilda. É. Nunca houve uma mulher como Raquel. Tu não existes! Existo. Só que sou uma espécie em extinção, difícil de encontrar. Mas eu te encontrei... Um pouco tarde para mim mas encontrei. Será que tu podes conhecer alguém num único dia? Normalmente não, mas tu és transparente, romântico, tens paixões diferentes dos outros homens; és o que muitas mulheres procuram mas não acham. Vou ficar vermelho, assim. Sabe, preciso te confessar uma coisa: tive medo de ficar aqui, hoje, pelo fato de tu serdes casada e a possibilidade de traíres o teu marido. Mas pensei: para o inferno a traição, a moral e os bons costumes, ela está sozinha, pior, solitária, precisa de alguém para conversar, fazer um carinho, rir, chorar, comer juntos... Viu, por que tu não existes? Tu és sempre assim ou és uma ilusão? Amanhã quando eu acordar, sumiste! Só sumo se o Jorjão entrar por aquela porta. Bobo! Se ele soubesse que eu não fiz nada... Não, tu fizestes e muito mais do que ele. Mas não consegui... Fazer amor? Fez mais amor comigo do que Jorge em cinco anos; para a mulher, fazer amor não é só penetrar, mas é também compartilhar um sanduíche, assistir um filme... Mas o que houve comigo? Nada. Nós apertamos na tecla errada e o disco saiu de rotação. Daqui a pouco volta ao normal. Tomara! Homem é tudo igual! Ué! Tu não falastes que eu era diferente?É. Mas numa parte és igual aos outros: pensa com isso! Ai, Raquel, será que... Vamos tentando até acertar a rotação, certo? Vamos bem devagarzinho...


Depois de Raquel, conheci uma menina apaixonada por Gene Kelly em Cantando na Chuva, mas nunca, nunca houve uma mulher como Raquel.



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Leitura e produção textual I


Turma: G

Marcos de Brito Paza

Tema: 5- Descrever uma imagem que fazem de ti


Falante


Um tagarela. Começa a falar, não pára mais. É isso que uma amiga me disse alguns anos atrás. Mas essa amiga, a Tânia, como nutria uma paixão secreta por mim, dizia que eu era muito filosófico, dava muitas voltas. Na verdade, ela queria dizer que eu lhe escapava, fugia de suas garras. Confirmo: não queria compromisso sério com alguém, principalmente com ela que saía de um relacionamento complicado, em que o ex-marido ainda a procurava, insistia numa reconciliação. Acatava tranquilamente o rótulo de evasivo. Falava mais do que agia, conforme minha amiga.

Nem sempre fora tão eloqüente como me pintam. Quando menino era um aluno calado, nunca levantava a mão para tirar uma dúvida. É por isso que não aprendi muito bem matemática. Precisei falar para namorar. Esquisito, agora tenho que falar pelos cotovelos para não namorar.

A observação mais aguda sobre a minha falta de freios na língua veio de uma namorada que tive. A bem da verdade, foi a última. Dizia que eu não parava de falar mesmo quando fazíamos amor. Será que foi por isso que terminamos? Talvez. Bom, falar, falava. Falava porque achava excitante, dizia o quanto ela era... Ora! Todos sabem o que dizer numa hora destas. Para ela, eu falava, gemia e gritava ao mesmo tempo. Um dia troçou comigo: se tu ficares mudo, acaba o homem. Não fiquei e acabou só os gemidos e gritos. Acho que vou falar menos, pode ser que arrume outra namorada. Será que uma mais tagarela do que eu seria a alma gêmea? Como diria Riobaldo: Contar é muito perigoso.








Leitura e produção textual I


Turma: G

Marcos de Brito Paza

Tema: 6- Fazer uma comparação


A esquina e a rua


Perto do local onde trabalho, na esquina entre a Avenida dos Andradas e a Caldas Júnior, habita uma carrocinha de pipoca. Mais ao fundo da rua, qualquer uma, habitam as marquises do mendigo. O pipoqueiro, homem humilde e grisalho, serve executivos, estudantes, donas-de-casa, jornalistas, garis e toda sorte de cidadãos que passam na esquina durante o dia. O mendigo, homem-húmus e barbudo, não serve a ninguém, fala sozinho, come o que pede aos fregueses do pipoqueiro, durante o dia. O pipoqueiro é pai de família, mora na periferia, tem um filho detido na FEBEM e uma menina na oitava série. Agora, fecha a carrocinha, pega sua bolsa e some pela rua. É noite. O mendigo conversa com esposa e filhos que nunca teve, sentado na calçada da esquina comendo pipoca com suas crianças. Agora, os ratos passeiam pela rua como senhores do mundo. É madrugada. O mendigo sonha.

O cheiro de pipoca doce desperta a manhã. Os senhores do mundo engravatados passam pela rua direto aos bancos. Uma criancinha estende a mão ao pipoqueiro, a mãe a puxa apressadamente. Os olhos do pipoqueiro seguem a menina. A menina chora com medo do mendigo. O mendigo cata alguma coisa no lixo. O pipoqueiro parece tão limpo. O mendigo é um borrão na paisagem. A paisagem de pedra começa a se apagar. O pipoqueiro parece irritado, vai para um bar beber. O mendigo passa pela rua e encontra o pipoqueiro caído num canto de calçada. Ele o abraça e conversa sem parar. O mendigo, chorando, abriga o seu amigo na cama de papelão.

Os ratos acordam a cidade. Todos de gravatas fazem grandes negócios. Passam muitos negociantes na esquina vazia. Os senhores do mundo sentem falta da carrocinha de pipoca. Os senhores do mundo passeiam sobre as marquises, casa dos mendigos que, agora, catam lixo.





Leitura e produção textual I


Turma: G

Marcos de Brito Paza

Tema: 7 Categoria

Criaturas de Deus


Nós, os humanos, somos criaturas terrivelmente bem escolhidas por Deus para sermos seus filhos mais queridos. A sociedade das formigas não teve a mesma bênção. Observando uma formiga desgarrada, fora da marcha para o combate que realizam diariamente, percebe-se que caminha com dificuldade, repleta de ferimentos por todo o corpo. Provavelmente, afastando-se para morrer com dignidade, sem chocar os outros com sua agonia final, como os elefantes fazem quando chega sua hora. Sempre que olhamos para uma formiga nesse estado, ficamos tentados em abreviar-lhe o sofrimento, esmagando-a com o pé. Por pura misericórdia ou prazer humano, tanto faz. Ela nos faz pensar sobre os motivos que lhe causaram tal infortúnio: será por alguma guerra por comida em alguma parte desta terra? Quem sabe, um pé inconsciente ou a pata de um animal que sabia o que estava fazendo? A única coisa que temos certeza na vida de uma formiga é que todas vão morrer um dia.

Se a peleja por comida ou em defesa de seus entes queridos for a causa de sua morte, então será aclamada como uma grande guerreira, uma heroína exemplar. Os membros de sua comunidade devotar-lhe-ão homenagens póstumas, um grande banquete e contarão às gerações vindouras seus grandes feitos, mitificando seu bravo Odisseu.

Porém, a morte por esmagamento, e ainda de um pé desavisado, não tem glória, não tem significado nem memória: é uma morte estúpida. Os humanos nada significam às formigas. Não passam de um acaso em suas vidas de operárias, de soldados. Morrer porque um transeunte cruzou o seu caminho é como se nunca tivessem existido.

Lamentavelmente triste é você saber que morreu pela mão de uma pata humana. Porque é um assassinato premeditado. Quando um inseto perde a vida pela vontade de um homem, revela-nos um propósito bem definido desse ser gigantesco, até o momento insignificante aos olhos da formiga: essa criatura é capaz de aniquilá-la por prazer. É preciso, então, temê-la como um deus onipotente. A formiga ferida pela vontade do homem não saberá jamais o quanto é brilhante, inteligente e superior dentre os animais do planeta, pois estará morta num Vietnam ou Sarajevo qualquer.

O momento mais terrível na vida de uma formiga pacífica é esbarrar numa imensa poça de sangue, vertendo de um homem estirado em seu caminho. Horrorizada, percebe, em largo cinerama, dois outros homens bem jovens, quase na idade de ficarem matando formigas por brincadeira, retirando os tênis, a jaqueta e a carteira do pobre diabo. A única conclusão a que a formiguinha pode chegar é de que ela vive numa sociedade apolítica e aqueles numa sociedade política, portanto o trabalho deles não é para todos e, pelo que se pode notar, o inverno dos homens é permanente, suas provisões, concentradas na mão de poucos, provocam a revolta de alguns membros da maioria desguarnecida. A desigualdade entre as criaturas superiores da Natureza poderá eleger a sociedade das formigas como a mais justa do planeta, assim, talvez, num futuro distante, nunca mais serão esmagadas pelo animal eleito por Deus. Aliás, Deus é a solução de todos os problemas humanos. E Ele é também um problema: pois é o grande herói mitificado pelos governantes num discurso que conduzirá a espécie humana governada à extinção. Realmente, as formigas ignoram os homens repletas de razão: não se dão conta do mísero inseto que representam em toda Criação, em todo Universo.





















Leitura e produção textual I


Turma: G

Marcos de Brito Paza

Tema: 8- Definição

O criador de caso


É chato você passar uma hora na fila da central de pagamentos do Banrisul sem acontecer nada, nem ao menos um tumulto para quebrar o tédio. Mas graças ao bom senso Divino temos uma figura ímpar no meio da massa passiva: é o caso do criador de caso. Isso mesmo! É sempre um sujeito calvo, de óculos e bilhete de loteria no bolso da camisa de poliéster branca, alguém com o tipo físico do Carlos Drummond de Andrade. Que Deus o tenha! Mexendo sempre nos óculos e com trocentos papéis na mão, no meio da imensa bicha, lá estava ele.


– Como é ! Vam'agilizá essa fila! Tem que botar mais caixa nessa porqueira. – Fala virando-se de um lado para outro, para todos e ninguém.

– Mas é brincadeira... Eles pensam que a gente tem o dia inteiro... – Sempre suspende a fala olhando o sujeito logo à frente ou atrás, esperando formar um burburinho, um comentário de solidariedade. Às vezes, encontra coleguinhas de infância.

Chegando ao caixa, o criador de caso cria cabelo no lugar, e, de longe, se vê aqueles braços abrindo carnês, regendo tripas de papel e falando alto com o caixa, fazendo-o calcular milhares de vezes. Dinheiro? É impressionante. Não se vê um criador de caso com dinheiro na mão. Ele não saca, não deposita, não paga, só está ali para criar caso. É um legítimo caudilho de confusões. Se a esposa o acompanha, serve-lhe de coronhinha, de advogada, de minha contadora, a patroa e, não encontrando viva alma ao seu redor, serve de caixa de reclamações.

Na rua,o criador de caso é a dor de cabeça dos feirantes, o calo dos jornaleiros e a pedra no meio do caminho dos transeuntes. Se correm, andam devagar, se andam muito próximo ele cria um caso. Enfim, o único com quem o criador de caso não cria caso é com outro criador de caso. Todos juntos se comunicam harmoniosamente como pombinhos apaixonados. São unânimes numa coisa: o maior criador de caso fez o mundo em seis dias. No sétimo, em vez de descansar, foi criar caso com seu arquiinimigo, o Diabo. Haja Criação nisso!

Leitura e Produção Textual I



Professor: Mathias

Aluno: Marcos de Brito Paza

Tema 9: Análise

O enigma de uma vida

Nunca me imaginei como professor, ainda mais, de língua portuguesa. Queria cursar Jornalismo, ou melhor, fazer Cinema, ser um cineasta. Meu sonho custava muito caro. É preciso ter muito dinheiro para fazer filmes – de família ou ter boas relações com as instituições governamentais que financiam os projetos. Da geração de cineastas de Porto Alegre não conheço algum que pertença à classe operária, advenha de família pobre, sem instrução e vivendo na periferia (vila mesmo). A maioria dos Fellinis locais é egresso das Faculdades de Jornalismo ou Publicidade e Propaganda. Por isso, pensava que comendo do mesmo veneno, compartilhando da mesma seringa, me sentiria incluído, aceito num grupo glauberiano ou curtametragista mesmo. Ledo engano. O Cinema brasileiro, por sua vez, também não resistiu às mãos de uma geração que não podia mais dizer nada (durante a ditadura militar) e, portanto, torra o dinheiro no prostíbulo da pornochanchada. Assim, desembarquei no curso de Letras porque sonhava em ganhar Kikitos, Oscars de melhor filme estrangeiro ou a Palma de Ouro em Cannes, porque não tinha me esforçado o suficiente, porque não tive as melhores escolas nem o desenvolvimento da vocação através de recursos audiovisuais, como filmar em super-8, ou em vídeo amador (formato VHS a partir do início dos anos oitenta).

O curso de Letras era um outro país, com uma outra língua que demorei a dominar. Quando iniciei o curso, em 1989, trabalhava na Televisão Guaíba, na área técnica, e foi muito difícil me manter em dia com as disciplinas cursadas: longas greves, viagens a serviço,enxurradas de livros para ler,área de conhecimento divergente da profissão técnica, a frustração por não passar em Jornalismo, a idéia de que o cineasta seria apenas um cinéfilo e de que, ao final do curso, seria professor de língua portuguesa fizeram com que eu empurrasse o curso com a barriga, trancando, desistindo e fazendo poucas disciplinas. Só tomei gosto pelo curso quando larguei o serviço na TV, comecei a fazer teatro comunitário (no Centro Humanístico Vida) e a estagiar como professor no Centro de Treinamento da Albarus S/A. Foi o momento em que acreditei no curso, Fazendo todas as cadeiras do semestre, lendo pra caramba e foi também o momento em que estava apaixonado, amava uma outra cinéfila que fazia teatro comigo. Quando ela terminou comigo (em junho de 1992), o mundo parou pra mim, nada tinha mais sentido. Em 1993 trancava novamente o curso, voltava a trabalhar numa estação de TV, agora em Florianópolis, tomava pileques e tinha experimentado, por pouco tempo (ainda bem!), drogas. No final de um dia de 48 horas me olhei no espelho e perguntei: Meu Deus, o que eu tô fazendo aqui? Não era nada disso que eu queria estar fazendo! Não é este o caminho...

Voltei a Porto Alegre em 1994, retomei o curso e a trabalhar como projecionista na Cinemateca Paulo Amorim. Tive uma outra namorada mas quando ela passou, eu fiquei: em vez de fugir, me agarrei às coisas que fazia. Precisei parar com o teatro para me dedicar ao trabalho e ao curso. É terrível dizer isso, mas só encontrei sentido no curso através das coisas que vivenciei fora do mesmo. Não vivi o espírito universitário pleno, chegava e saía sempre às pressas, fiz poucas amizades, sempre me senti um estranho no ninho, mas isso vem mudando já ao final da graduação.

Aprendi muita coisa dentro do curso, sem dúvida, mas acho que aprendi mais com o bate-papo, as discussões e leituras indicadas pelo grande amigo que fiz desde que comecei a trabalhar na cinemateca, o Darwin Oliveira, que aliás também é professor e está desiludido com o magistério público. Penso um pouco diferente sobre a posição dele. Acho possível fazer um trabalho com a escola pública sem ser empregado dela. Nem quero ser, porque vou estar, num certo sentido, contra ela, quero ter a pretensão de ser um dos que vão alertar os elefantes sobre a força que têm dentro do circo. Como? Só tem um meio (sendo civilizado, é claro): através da língua. Não do estudo mas do uso e do abuso dela. Pra mim a língua não é um objeto mas um sujeito. O sujeito é a sua língua. O resto vem a reboque. É esta consciência que me aponta o caminho para ser professor. E agora eu quero ser professor, quero o brevê para mexer na estrutura, não importa que eu seja apenas um cisco no olho da sociedade, como professor quero irritar esse olho de tal forma que só o arrancando ela me sufocará.

Sempre estudei em escola pública. Da 1ª à 4ª série estudei na escola de 1º grau incompleto Fabíola Pinto Dornelles; da 5ª à metade da 6ª, na E.E. de 1º grau Pe Theodoro Amstad; da segunda metade da 6ª até a 8ª, na E.E. de 1º grau Tuiuti, em Gravataí; os três anos do 2º grau fiz na E.E. de 2º grau José Feijó, em Porto Alegre, profissionalizando-me, teoricamente, em técnico em contabilidade.

De 1972 a 1983 foram 11 anos sem vacilar, claro, em alguns momentos passei raspando para o próximo ano. Em 1984 prestava o serviço militar como aluno de um curso superior (diziam): o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de 2ª classe de Porto Alegre (CPOR-PA). Habilitação do curso: Oficial R-2 da arma de Infantaria. Os inimigos na época eram sempre os vermelhos (comunistas?). Provavelmente hoje continuam sendo os vermelhos, digo, os homens do planeta vermelho (Marte) que, engraçado, são verdes como nós os infantes (-lóides). Bem, percebe-se que de 1985 a 91 o serviço na TV me deixou um pouco subversivo, mas ela não teve culpa e sim o fato de eu saber que a direção e os editores dos telejornais fizeram a campanha eleitoral do Pedro Simon em vez de cobri-la apenas. Indignado, em 1989, prestei vestibular para Jornalismo, porque além de querer ser diretor de cinema ou de especiais para TV, tinha a idéia ingênua de que como jornalista pudesse interferir nos fatos, apurar a verdade e mobilizar a opinião pública. A gente tem cada uma... Já pensava como um cisco no olho. Aí eu tive a sorte de cair na Letras bem no meio de uma grande greve. Sorte maior foi ter sido aluno do professor Celso Luft (89-1) e participado como monitor da disciplina de Composição em Língua Portuguesa I, orientada pelo professor Arcanjo Pedro Brigmann. Acabei não fazendo nada, pois outra grande greve em 91 tirava o fôlego de qualquer um, apenas conheci as teorias do João W. Geraldi em seu O texto na sala de aula, o que significou um pequeno passo para o jornalista, um grande passo para o professor. Mas a grande viagem à lua tem sido o final do curso. Explico. No início queria falar inglês verigudi, depois só queria saber de literatura. Língua portuguesa? Chô, mico! Muita gente que eu conheço odeia Português, porque Português é só a gramática. Aí, no final, aparece um sujeito que diz que ensinar a escrever é ensinar a escrever literatura brasileira.

A tese de doutorado do professor Paulo Guedes é uma machadada na cama, é impossível dormir tranqüilo depois de lê-la. As suas idéias falam do/ no/ para o lugar de onde venho (fora da elite), de uma prática que nunca existiu na minha vida escolar mas manifestei-a na vida íntima, nos poucos momentos que (re-)escrevi as histórias dos filmes que ia assistindo. Isto ajudou um pouco, mas o medo de botar as idéias no papel, de falar com a língua solta para alguém que certamente vai te corrigir, porque, me parece, já nascemos errado, faz a gente resistir ao processo de escrever. Eu, particularmente, fui calado na 8ª série quando analisei, numa prova, um trecho dO Continente do Érico Veríssimo. Vejam só: a professora escolheu duas análises para comentar, a outra não lembro do que se tratava mas era de uma menina muito aplicada. Quando ela leu o meu texto e apontou, rindo, a palavra sofridão, procurando saber se eu queria dizer sofrimento ou sofreguidão, fiquei envergonhado com a maneira de ela me perguntar como é que eu podia fazer uma análise psicológica da personagem Bibiana, tendo eu tão pouca idade. Acho que menti sobre a leitura de Fróidi (lembro ter pronunciado assim o nome Freud). Ela ficou espantada, eu também. A questão era que de lá pra cá escrever nunca mais!

Sinceramente, prefiro sair do curso com a idéia de ensinar(-me) a escrever lendo a literatura brasileira, desde Gregório de Mattos a dos alunos, àquela produzida em sala de aula por uma necessidade de dizer quem eu sou, de mostrar pra mim e os demais que eu existo dentro do conjunto, da coletividade, sendo peça fundamental para a harmonia ou desarmonia do mesmo. Talvez algum dia faça um filme, se não o fizer, não tem importância. Pelo menos quero ter a felicidade de evitar que outros façam a correção de sua sofridão. Quem sabe, escrever é uma mistura de sofrimento com solidão. Agradeço o balde de água fria que a tese do Paulo jogou sobre os intelectos acadêmicos da Universidade. Companheiros, no texto ou fora dele, A luta continua...
























Leitura e Produção Textual I


Turma: G

Professor: Mathias

Aluno: Marcos de Brito Paza

Tema 10: Análise II

Retratos da Vida


Engoli o angu da cartilha de 1973. Aprendi a ler aeiou como qualquer outro guri que tem que ir para escola, comportadinho, usando uma camisinha branca e uma gravatinha azul-marinho com as iniciais FPD, isto é, Fabíola Pinto Dornelles. Era tempo de ordem unida no pátio e de avançar à sala de aula em fila indiana. Nunca questionei nada nem sequer saí da fila. E a fila principal, para mim, era a da merenda. Depois, bem depois é que tomei gosto por estudar, construir sílabas...

Engraçado, parece que Bambi foi a primeira estorinha que li, ou melhor, assisti como uma projeção de slides na biblioteca acompanhada de um disquinho que narrava a história. Ainda tenho o disco do Bambi, que adquiri tempos depois, guardado em algum lugar da minha casa. Interessante lembrar isso: ler era recontar as histórias sílaba à sílaba no papel. Mas a experiência durou pouco. Doravante, a leitura que predominou foi a de orações ao léu como João e Maria foram ao bosque ou Pedrinho caçava onças. Eu e mais alguns coleguinhas sempre dávamos um sentido todo próprio quando perguntávamos o que João e Maria faziam no mato coisas que queríamos fazer com as coleguinhas também ou quando folgávamos com a sexualidade de Pedrinho, das duas uma: ou era bicha ou barranqueava os bichos à revelia. Para dizer a verdade, sempre houve alguns Pedrinhos em todas as escolas, até hoje.

Mais tarde uma outra professora complica o sentido que sabíamos dizendo que "João e Maria" é sujeito composto e "foram ao bosque" é predicado verbal e que o verbo ir é irregular, está no modo indicativo, na terceira pessoa do plural e no tempo do pretérito perfeito. Uau! Foi um Deus nos acuda! Passei a vida escolar fazendo estas elucubrações gramaticais. Graciliano Ramos, Machado de Assis, José de Alencar, entre outros entravam na minha cabeça recortados em frases, períodos e orações. Era um jogo cada vez mais complicado, mas só de regras, o jogo mesmo não acontecia desde Bambi.

O primeiro grau chega ao final e o milagre acontece: um livro inteiro é lido a muito custo. Éramos seis de Maria José Dupré está hoje jogado em algum canto do meu inconsciente, provavelmente, fazendo companhia ao amigo do segundo grau Memórias de um sargento de milícias. Eis as duas únicas raridades literárias que a escola me legou. Foi o meu verdadeiro milagre econômico: apenas dois romances. Confesso que fugi do Machado. Não seria o esperado? É claro! Não fora preparado para ler, mas ler obras completas. Fora preparado, sim, para cumprir ordens, fazer deveres de casa e a cantar este é um país que vai pra frente... Oh, oh, oh, oh...

Sabem do que mais? Nunca um professor (de primeiro grau) disse um palavrão ou nome feio como conheci na infância. Se algum tivesse dito merda e explicasse que era um substantivo feminino, que queria dizer aquilo que não presta e jogamos fora de nosso corpo, com certeza eu teria, junto com os colegas, arranjado um sentido próprio dizendo: João e Maria foram ao bosque. Grandes merda! E o que isso me diz? Cadê a história deles? Como é que eu posso contar uma história parecida? Mas que merda! A escola não me ensinou a escrever. Mas se o país foi pra frente, a merda da escola foi junto isso é um complemento ou um adjunto? Não importa! A ambigüidade é proposital. Não nego, teve bons momentos: dois romances lidos e alguns vividos, alguns amigos até hoje, o serviço militar no CPOR e o emprego numa estação de TV, o que foi significativo para arrancar o buçal da escola e do quartel. Enfim, encontrei um caminho a Universidade.

Entrara no curso de letras querendo ser jornalista, fazer cinema, escrever peças de teatro, roteiros para televisão e outras incumbências da profissão. Portanto, precisava aprender a escrever, a falar inglês bonitinho se quisesse ir a algum lugar na área. Ledo engano! Trombei de cara com uma professora de estudos literários que colocou no quadro uma lista de dez romances, duas ou três enciclopédias a consultar, a bíblia e uma infinidade de outras coisinhas. E jacaré ficou na aula? Nem eu! Como era bicho de 89, depois de uma greve de 90 dias, permaneci naquelas disciplinas que estavam interessantíssimas para mim: EPB, as aulas do Luft sobre formação de palavras e Antropologia Social. Um tanto frustrado, fui empurrando com a barriga o curso. De repente, não mais que de repente a luz se fez. Descobri que um galo sozinho não tece a manhã.

A paixão pelo cinema me conduziu a algumas leituras e a descoberta do texto teatral. Em 91 tomava uma decisão: largar o emprego na estação de TV, que atrapalhava meus horários de aula. Encarei o curso por inteiro e comecei a estagiar como professor de língua portuguesa para funcionários de uma fábrica (a Albarus). Ganhava menos do que a metade do outro emprego, mas estava satisfeito: descobria a dor de ensinar sem saber, de reproduzir a merda da escola pois o programa de curso supletivo é igual ou pior que o dela e tinha começado a fazer teatro comunitário próximo a minha casa.

Caía mais um buçal da minha cara: uma ova que eu seria jornalista! Se não me preparar para ajudar a transformar esta realidade social que nos circunda, ela nos destruirá, a classe dominante continuará sempre dando as cartas sozinha e a plebe sustentando seu frágil esqueleto com migalhas. Enfim, não dava mais para ficar teorizando sobre a Arte e a Literatura, mas eu precisava saber para que serve essa Arte e Literatura. Será que serve aos meus correligionários na comunidade? Ou melhor, na periferia, na vila que são expressões pouco utilizadas no discurso acadêmico.

O único sentido que levo de minha formação é que ela está incompleta, só encontrando uma parte que faça algum sentido, de fato, no contato com as pessoas que realmente precisem do conhecimento que a Universidade me outorgou. Ainda é fato concreto: eu nada sei do que vou encontrar lá fora. Apenas tenho a idéia de que é necessário construir o saber junto com meus alunos. Espero conseguir um resultado positivo.























Leitura e Produção Textual I


Professor: Mathias

Aluno: Marcos de Brito Paza

Tema 11: Avaliação do semestre


Farewell


Lá se vai mais uma parte de nossas vidas num final de semestre, mas é mais um pedaço de desejos inconclusos ou conclusos que nos saliva a boca do que a certeza de ter concluído uma etapa de vida. A conclusão das atividades e o debate em sala de aula são muito mais um pretexto para nos mostrar que a vida real não pára e nós apenas tentamos capturar um pequeno instante do espetáculo que é a vida; são, principalmente, quem sabe para alguns poucos, o único momento de refletirem (por escrito e falando) sobre as coisas do mundo e de si próprios, compartilhando a dor de escrever com outros que já lutam com palavras há algum tempo; são ainda o funil por onde passam aqueles que tomaram consciência de que a vida não é um mar de rosas somente mas também um mar de tormentas, lugar de lutas constantes no qual não podemos vacilar, porque se não cumprirmos ao menos nossos pequenos obstáculos dentro de um curso escolar, mesmo que sob a pressão do emprego-trabalho-pouco tempo, como poderemos velejar se o sopro mais forte de uma brisa nos afugenta de volta à praia?

Confesso que o meu semestre na disciplina de Leitura e Produção Textual não foi seguido à risca, que poderia ter aproveitado mais e melhor os debates e leituras se tivesse sido mais pontual e assíduo. Parte do problema foi um contratempo durante a criação inicial da turma em que nos encontramos atualmente (G) e outra um desleixo meu mesmo,reforçado pelo fuso horário do meu local de trabalho que me faz chegar em casa meia-noite e ir dormir lá pela uma. De qualquer maneira, pra não sair do curso com um terrível complexo de culpa de ser identificado como um aluno turista ou matão, tomei juízo de gente grande e assombrei o professor com minha presença enceteira no terço final do semestre.

Espero que o trabalho realizado por nós, os alunos, não seja tomado como uma tarefa a mais dentro do curso, ou seja, que nenhum de nós encare a tarefa de escrever como uma obrigação escolar mas como uma necessidade pessoal e profissional. Não importa que nossas idéias estejam confusas ou desorganizadas, que a gramática nos passe a perna, o que realmente faz sentido é nos inserirmos no mundo da escrita para que possamos deixar nossas marcas, para que nossas vozes ecoem indeléveis na mente dos homens, que esquecem facilmente a sua história, repetindo-a, e, ainda, para nos expormos ao árduo trabalho de (re-)construir um sentido, uma clareza coletiva à medida que nossos textos entram na roda das discussões, com suas falhas e lacunas sendo reelaboradas na busca desse sentido. Negar esse processo, é negar a si mesmo como sujeito no mundo, é ser uma eterna criança conduzida pelo vampiro de Düsseldorf.