domingo, 13 de junho de 2010

Ensaio sobre Terra Sonâmbula de Mia Couto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
LITERATURAS AFRICANAS DE L. PORTUGUESA















VIAGEM À TERRA SONHAMBULAN-TE DE MIA COUTO









Marcos de Brito Paza










Porto Alegre, janeiro de 1997.




























(...) uma sombra mais negra que a sombra da noite, e em volta nobremente nas dobras de uma suntuosa e-loqüência. A visão pareceu entrar na casa comigo -a padiola, os padioleiros fantasmas, a bárbara multidão de adoradores obedientes, a escuridão das florestas, o brilho do remanso en-tre as curvas lamacentas, o bater do tambor, regular e abafa-do com o bater de um coração -o coração de uma vencedora escuridão. Foi o momento de triunfo para a selva, um avanço invasor e vingativo que, pareceu-me, eu teria de repelir sozi-nho pela salvação de outra alma. (...) Queria apenas justiça. Toquei a campanhia diante de uma porta de mogno no pri-meiro andar, enquanto esperava ele parecia fixar-me do en-vernizado painel -fixar-me com aquele olhar amplo e imenso, condenando, detestando todo o universo. Pareceu-me ouvir o grito sussurrado: 'O horror! O horror!'
Joseph Conrad (Coração das Trevas)


VIAGEM À TERRA SONHAMBULANTE DE MIA COUTO

No início do século XX um escritor irlandês mudaria radical-mente o modo de se conceber a narrativa de ficção moderna: James Joyce, com o seu monumental Ulisses, viagem homérica no "fluxo de consciência" de um simples homem. Pouco mais da metade desse século, em terras brasi-leiras, outro gênio das letras traria à luz obra de alcance similar a de Joyce: Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, que enveredava sertão adentro com seu Riobaldo, personagem-narrador, um jagunço filósofo que faz sua travessia sobre o fio da navalha entre o Bem e o Mal. No outro lado do ser-tão mineiro, cruzando o oceano, num outro oceano, surge uma nova narrati-va onde os personagens se definem como outros viajantes, viajantes em uma Terra Sonâmbula, que é título e lugar-condição da obra de Mia Couto. A terra é Moçambique. O tempo, o atual, de guerra, de morte, de fome, de se-ca... E de sonho.
Durante quatro séculos Moçambique viveu sob o julgo colo-nial de Portugal, só obtendo a independência após dez anos de uma guerra sangrenta pela libertação, finda com a queda de Salazar em 1974. A partir de 25 de junho de 1975, com a independência política e econômica consumada, Moçambique se encontra novamente em conflito, agora, a disputa pelo poder interno se acirra. Samora Machel, primeiro presidente e líder da Frente para a Libertação de Moçambique (FRELIMO), incapaz de conduzir e resolver os problemas econômicos (fortes secas que assolam o país) e sociais (fome e miséria generalizadas), além de auxiliar os rebeldes contra o regime de su-premacia branca na Rodésia (atual Zimbabwe), sofre o ataque da Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO), criada pelo governo da Rodésia para destruir as bases rebeldes localizadas em Moçambique. Em 1980, após a Ro-désia ter ganhado o governo da maioria negra, a África do Sul adota a RE-NAMO, a qual investe numa campanha violenta para desestabilizar Moçam-bique e acabar com seu apoio aos oponentes do regime da África do Sul. Em 1984, com uma economia arrasada e incapaz de conter a RENAMO, Mo-çambique assina um pacto de não-agressão com a África do Sul. Apesar de Moçambique manter o acordo, a África do Sul permanece mantendo a RE-NAMO por vários anos.
Após a morte do presidente Samora Machel em desastre de avião (1986), sendo substituído sem maiores problemas por Joaquim A. Chissano, o nome do país muda de República Popular de Moçambique para República de Moçambique (1990). Com uma nova Constituição, o Marxis-mo-leninismo é abandonado e é criado um sistema político pluripartidário, com eleições diretas para presidente através do sufrágio universal e um man-dato de cinco anos por até duas gestões.
Ainda em 1990, o governo e a RENAMO assinam um cessar-fogo limitado ao longo do corredor de Beira e da ferrovia de Zimbabwe para Maputo. Em março de 1992 os dois lados assinam um protocolo sobre um sistema futuro de representação proporcional, com eleições um ano depois de efetivado o cessar fogo em todo o país. Em agosto, Chissano e Afonso Dhlakam, líder da RENAMO, se encontram pela primeira vez face à face e assinam um acordo definitivo, efetivado em 4 de outubro de 1992, pondo fim à guerra e clamando por eleições democráticas. Mesmo com o fim da guerra, os problemas com a seca e a fome permanecem até hoje.
O contexto histórico acima serve ao propósito de demonstrar o pano de fundo onde os personagens de Mia Couto navegam. Os persona-gens Tuahir e Muindinga (um velho e o outro um menino), como dois cava-leiros errantes, encetam uma jornada no mais profundo coração das trevas (conradiana mesmo), embarcando não em um vapor mas num machimbombo (ônibus) queimado, imóvel, marcado pelo horror da guerra. O único movi-mento possível é o da paisagem - a verdadeira viagem da narrativa - , con-forme vão sonhando, ou melhor , lendo os cadernos de Kindzu. Sua leitura (re)cria o espaço, a esperança na terra, no fim das trevas e no começo da luz ( a sabedoria, a paz ). E Muindinga, ao se transformar num personagem-leitor-narrador, carrega consigo o fato de representar a passagem de uma tradição oral (marcada no analfabetismo de Tuahir) à escrita, porém em lín-gua portuguesa, lugar onde é possível inventar o mundo em brincriações, tornar viável o caminho, dando ao mundo o testemunho de uma terra irriga-da com sangue e a ignorância de alguns homens maus.
Dentro dos cadernos, Kindzu transforma a terra que habita em água. A busca de identidade o conduz a trilhar o caminho do pai, já um es-pectro que o persegue. Deixa o lar, sua terra devastada, para viver dentro de uma canoa a maior aventura de sua vida: transformar-se num guerreiro napa-rama com o objetivo de ajudar a pôr fim a esta guerra insensata. A água dos mares o conduz a um novo destino de águas: uma mulher. Farida compõe uma das passagens da jornada de Kindzu onde o erotismo se liqüefaz, tal é a forma como ele nos descreve seu encontro com a nova personagem:

(...) Um dedo foi entrando no canto da boca . To-quei primeiro em seus dentes, depois senti sua saliva. Era uma saliva quente, parecia que não era apenas um dedo mas todo eu inteiro que penetrava numa caverna aquecida. Outro dedo caminhou nos interiores dela, nervoso de contente. Lá fora, o mar esturdilhava, lançando espumas. O vento soprou com mais raiva, as ondas começaram a varrer tudo, sem res-peito. Mesmo ali, no guardado de nossa sala, a água jorrava. O mundo esvanecia e o mar já não importava. As mãos mo-lhadas de Farida desataram as vestes, os dedos dela parecia eram de água. Ela se deitou, derramada no chão de ferro. Nos colamos em gestos de afogado. As vagas ondeavam nos-sos corpos, indo e vindo. Os dois éramos já só um, emergindo como uma ilha num imenso nada. ( COUTO,1993.p.117)

A partir desse momento, Kindzu mergulha mais profundamen-te neste sea of troubles ( mar de infortúnios ) hamletiano, tomando para si a missão de encontrar o filho perdido de Farida, Gaspar. Segundo a resenha crítica de Alberto da Costa e Silva ( na segunda e terceira capa ), Terra So-nâmbula é considerado como um romance de cavalaria, o que, por analogia, Gaspar simbolizaria o Graal da restauração, o cálice redentor de todos os infortúnios.
O amor de Kindzu por Farida o erguerá sobre os homens e a própria guerra. Sua busca por ser um guerreiro naparama se dissolve diante do novo destino. Contudo, quase como o seu pai, Gaspar era um fantasma, uma miragem no horizonte, uma esperança; Kindzu ao procurá-lo volta-se ao interior da terra, é o momento de encontrar a sua raiz, de realmente agir em prol da reconstrução do país; ao passo que Farida, exilada num navio enca-lhado, representa uma evasão latente, a fuga sonhada mas não concretizada. Essa contradição entre a fuga e a busca de um país apresenta-se como cerne temático dentro da narrativa, entre outros, é claro, onde o personagem, em passagem magnífica, nos diz:

(...) A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indí-genas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretu-do, culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair pa-ra um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente dentro de África. ( COUTO,1993.p.113 )

O comentário de Kindzu demonstra perfeitamente não somen-te a sua condição mas a de todo o povo moçambicano. Toda a sua cultura, seus antepassados, desfalecendo diante da sobreposição de uma outra cultu-ra, onde a língua dos invasores, como uma droga inoculada, vai lentamente apagando o antigo mundo desse povo, roubando-lhe sua história. E a barbá-rie da guerra legitima tal apagamento, estilhaçando as esperanças, as quais vertem-se em medo e angústia, o que, por sua vez, move Farida ao encontro de um novo mundo. Kindzu em caminho oposto, tenta reunir os pedaços de sua África e o faz contando sua história, para enfim encontrar o seu conti-nente.
A trajetória dos cadernos de Kindzu faz pensar sobre a possi-bilidade de enxergar um país lewiscarrolliano, conforme avança a narrativa de um estado consciente a um realismo fantástico, onde as maravilhas só acontecem no lado de dentro dos homens, deixando no lado de fora o hor-ror, a sua parte sombria, diabólica, irracional. O país dos sonhos navega en-calhado na beira da praia, nunca alcança um porto seguro - imagem provo-cada pela personagem Farida que tenta pôr um farol para iluminar o caminho dos homens, sem sucesso e pagando com um destino trágico - porque a seca atingiu o coração dos homens. Seco é o coração da terra que Kindzu peram-bula até as suas páginas lubrificá-lo, encontrando o jovem Gaspar no cami-nho final de sua narrativa. Aqui, entende-se que o destino do narrador é o caminho. Toda a sua jornada é um retorno ao começo, uma tentativa de re-fazer, recriar a obra danificada, quebrada. Nesse sentido, o personagem de Mia Couto, invertendo a ordem, sai da lenda para entrar na história, numa circularidade dinâmica regida pelo sonho, rompendo com a lógica formal de contar uma estória. Atitude que ao transcender a estrutura do romance, man-tendo coerentemente a riqueza mítico-simbólica do enredo, eleva Terra So-nâmbula ao patamar das obras-primas ou dos clássicos universais. *


* Texto de Marcos Paza, publicado em: Cadernos do IL\ Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras. N17 (junho de 1997) - Porto Alegre: IL, 1997-.

Nenhum comentário:

Postar um comentário